O impacto de despertar memórias
Autor: Eduardo Brancaglioni Marquetti Lazaro
Publicado em: 11/07/2025 19:22:53
Tempo de leitura: aproximadamente 12 minutos
A Jornada de Aisha: Tecendo o Futuro, Ressignificando as Raízes
O cheiro de terra molhada após a chuva e o burburinho constante dos pátios de uma escola pública, cujas paredes tremulavam com as marcas de conflitos recentes, eram a sinfonia que embalava os primeiros sonhos de Aisha. O nome, de origem árabe, significa "viva" ou "cheia de vida", e ressoava com a obstinação que a forjaria. Em sua aldeia no Sudão, a vida era tecida em comunidade, uma vasta tapeçaria de apoio mútuo onde cada fio era interligado. A educação ali era uma dádiva e uma luta diária. As salas de aula, superlotadas, o giz riscando um quadro-negro desbotado, e os livros, raridades compartilhadas por dezenas de mãos, eram testemunhas de um aprendizado ávido, mas precário. A ausência de banheiros adequados, a falta de água potável – tudo era parte da dura realidade que forjava a Mnemose de Aisha.
Mnemose, para além da lembrança pessoal, é um conceito que se refere à memória coletiva e ancestral de um povo, à forma como experiências passadas, valores e saberes são transmitidos e ressoam através das gerações. Para Aisha, era um vasto arquivo interno, a recordação profunda de sua etnia e de sua família, um reservatório de sabedoria ancestral que moldava sua percepção do mundo. Incluía as histórias contadas sob o sol poente, os provérbios que guiavam a moral, os rituais que celebravam a vida e a morte, e a forma como a comunidade compartilhava fardos e alegrias. O folclore de seu povo, com seus contos de persistência e astúcia coletiva, era a base de sua compreensão. A disciplina de fazer valer cada minuto, a autonomia de buscar o conhecimento por conta própria – essas eram habilidades desenvolvidas em um ambiente de constante desafio. Eram um legado cultural transmitido em cada gesto e em cada palavra de seus mais velhos. A doçura simples e familiar da comunidade permeava essa existência, onde o sofrimento era absorvido pelo coletivo e a aprendizagem um ato de teimosia compartilhada.
A notícia da bolsa integral em uma grande universidade particular de São Paulo, no Brasil, chegou como um farol em meio à escuridão que se aprofundava. Os conflitos armados no Sudão haviam devastado sua região. Não mais tão jovem, e com a dor de ter perdido familiares, Aisha precisava de um novo caminho. A vida independente era uma necessidade vital. Foi então que, em meio aos escombros de uma universidade local após um bombardeio, Aisha encontrou páginas chamuscadas de artigos científicos sobre Psicologia Comportamental no Brasil. Aquelas palavras, mesmo danificadas, acenderam uma curiosidade e um propósito. O Brasil é um dos países com mais pesquisadores de prestígio na Análise Experimental do Comportamento, e esse primeiro contato de Aisha, ainda no Sudão, era o prenúncio de uma conexão profunda. A decisão de partir para São Paulo, junto com um grupo de colegas que também buscavam refúgio e oportunidades, não foi uma escolha casual, mas uma necessidade premente de sobreviver e encontrar um novo sentido.
Essa oportunidade surgiu através de uma associação comunitária local no Sudão, uma rede de apoio que, mesmo em meio ao caos, batalhava para oferecer um futuro aos jovens. Com o intuito de direcionar refugiados elegíveis para países como o Brasil, essa associação facilitava o acesso a bolsas em universidades de prestígio, visando a continuidade dos estudos e a reconstrução de vidas.
A odisseia do Sudão a São Paulo foi exaustiva: burocracia interminável, despedidas dolorosas e a incerteza de um novo continente. Aisha sentiu a doçura do acesso a um mundo de oportunidades, mas também um temor velado. Por trás do brilho, havia uma "doçura venenosa": o peso das expectativas, tanto as suas quanto as da comunidade que a via como esperança. Era um fardo sutil, disfarçado de orgulho, corroendo a leveza de sua conquista com a pressão de não poder falhar e de "se encaixar" em um novo mundo, muitas vezes sacrificando seus laços comunitários de origem.
O Meio: Desafios Culturais e o Despertar Psicológico
Em São Paulo, Aisha e seus colegas encontraram moradia em um bairro periférico. Ali, os conflitos culturais com a individualidade da metrópole eram evidentes. Longe da vida em comunidade que conhecia, onde cada um sabia do outro e o apoio era um costume, a cidade grande parecia exigir uma solidão forçada. No entanto, o grupo de colegas, unidos pela mesma jornada de deslocamento, recriou sua própria microcomunidade. Eles se ajudavam em quase todas as necessidades um do outro, compartilhando moradia, refeições e, mais importante, o fardo emocional da adaptação.
Nos corredores impecáveis da universidade, o ar era diferente. Havia uma "doçura venenosa" flutuando ali, quase imperceptível. A gentileza polida, os sorrisos fáceis e o aparente apoio escondiam uma pressão implícita para que Aisha se desvencilhasse de sua origem, para que "modernizasse" seus costumes. Para Aisha, a bolsa, antes um triunfo, começou a se transformar em um fardo silencioso. Cada bom desempenho, cada pergunta bem formulada, parecia carregar o peso da "prova": a prova de que ela merecia estar ali, de que não era um erro do sistema, e de que havia "superado" seu passado cultural. A análise do comportamento de Aisha revelava um sofrimento crescente. Ela se cobrava de forma exaustiva. A busca por conhecimento autônomo, antes uma paixão, virou uma necessidade angustiante de compensar o que sentia faltar em sua base educacional e cultural, agora vista sob uma lente crítica e internalizada.
A saúde mental dela na aprendizagem começou a dar sinais preocupantes: noites em claro, a ansiedade roendo as bordas de sua concentração, a síndrome do impostor sussurrando dúvidas a cada sucesso. Ela se tornava mais reclusa, mergulhando nos estudos para fugir da pressão social e daquela doçura que parecia elogiar e cobrar ao mesmo tempo. Era um presente que exigia uma perfeição insustentável.
Para lidar com essa pressão, Aisha desenvolveu uma persona de adaptação. Essa estratégia, na psicologia, pode ser entendida como um padrão de comportamento de evitação. Aisha criava uma camada de sucesso e controle inabalável que apresentava ao mundo, funcionando como um mecanismo de autoproteção. Embora reduzisse a ansiedade a curto prazo, essa persona a isolava, impedindo-a de processar emoções genuínas e de se reconectar com sua essência cultural e com os laços comunitários que antes a nutriam. A exaustão aumentava, e a persona de adaptação se fortalecia para mascará-la, fazendo com que a autenticidade de Aisha, enraizada em sua cultura e folclore, se perdesse em meio à performance.
Foi em um Seminário de Inovação e Cultura Afro-Brasileira na universidade que o ar rarefeito ganhou novo oxigênio. Para celebrar o Dia da Consciência Negra, uma data significativa no Brasil para refletir sobre a luta e as conquistas da população negra, a universidade convidou Toalá Antônia, uma palestrante que vinha de Itaquera, zona leste de São Paulo. Toalá, que mobilizou redes sociais e se tornou uma personalidade de influência não apenas por sua produção material, mas por ser uma inspiração sólida para mulheres e suas vulnerabilidades sociais, subiu ao palco. Com ela, não havia doçura venenosa, mas uma verdade crua e inspiradora que ressoava com a própria linha histórica de família e costumes de Aisha. Toalá falou da resiliência – não como algo inato, mas como uma habilidade adquirida através de vivências, dos fracassos que viraram degraus, da reconexão com a ancestralidade através das capulanas e da força da comunidade.
As capulanas são tecidos vibrantes, com padrões complexos e coloridos, largamente utilizados em diversos países africanos, especialmente em Moçambique, Angola e outros de influência bantu. Mais do que simples peças de vestuário, as capulanas são símbolos culturais profundos. Elas narram histórias, expressam identidades, funcionam como códigos de comunicação e são usadas em rituais, celebrações e no dia a dia. Representam a força da mulher africana, a beleza da sua cultura e a resistência de um povo.
A história de Toalá, rica em folclore e cultura nigeriana, era uma inspiração forte, um testamento da capacidade da diáspora africana de construir, redefinir e prosperar nos dias de hoje. Ela mergulhou nos aspectos psicológicos da negritude brasileira, abordando o que significa construir uma identidade positiva em meio a estruturas que tentam desvalorizá-la, e como o pertencimento linguístico – a conexão profunda com a língua e as nuances culturais que ela carrega, formando um elo de identificação entre diferentes culturas da diáspora – é vital nesse processo. Era um convite ao Sankofa, a "voltar e pegar o que esqueceu" para construir um futuro autêntico. Toalá não disfarçava suas lutas, mas as transformava em força. Para Aisha, que ouvia cada palavra com o coração apertado pela própria batalha silenciosa, aquilo foi um bálsamo.
O Desfecho Surpreendente: A Capulana como Centro e o Caminho Profissional
Aisha respirou fundo, o cheiro de tecido e cera de abelha preenchendo seus pulmões, um aroma que agora associava não apenas à tecelagem, mas à própria cura e à redescoberta da força da comunidade. Havia desvendado os nós da "doçura venenosa", re-tecido sua linha do tempo psicológica com os fios da resiliência e da autenticidade, e desmantelado a persona de adaptação que a aprisionava. O Adinkra de Sankofa não era mais só um conceito; era sua bússola.
O Adinkra de Sankofa é um símbolo visual poderoso, originário dos povos Akan de Gana (na África Ocidental). Ele é representado por um pássaro mítico voando para a frente, mas com a cabeça voltada para trás, segurando um ovo em sua boca. Esse símbolo nos ensina a sabedoria de olhar para o passado – nossas raízes, nossas experiências (boas e ruins), nossa cultura e nossos erros – para então construir um futuro mais forte. Significa que não há problema em revisitar o que foi esquecido ou perdido em sua história, em suas raízes, e trazer esse conhecimento para o presente.
Para Toalá Antônia, filha de pai nigeriano, o Sankofa era mais do que um símbolo; era a própria base de sua existência. Ela encarnava o retorno às origens ao resgatar e valorizar a arte das capulanas, tecidos que eram parte intrínseca de sua herança paterna e de culturas africanas. Ao construir seu negócio e sua voz de influência a partir de Itaquera, ela não apenas celebrava o material, mas trazia a sabedoria ancestral de sua família e comunidade para o presente, construindo um futuro de inspiração e resistência.
O Sankofa, então, se tornou também para Aisha a permissão para que sua cultura e costumes sudaneses, com sua inerente vida em comunidade, fossem sua fonte de força. O ato de tecer capulanas era o seu antídoto, um laboratório prático para sua própria terapia comportamental. O ritmo meditativo e focado da agulha e da linha no tecido oferecia um reforçador positivo imediato e saudável, aliviando a ansiedade e a exaustão. Cada peça concluída era um pequeno triunfo, um reforço para a sua autoestima genuína. Era um processo de "voltar e pegar" não só a beleza estética, mas os valores de persistência, comunidade e identidade que a tecelagem representa, nutridos em seu próprio folclore e linha histórica de família, aprofundando sua saúde mental e seu senso de propósito.
Após anos de dedicação, Aisha finalmente se formou em psicologia. Com a colaboração de seus conterrâneos, aqueles que compartilharam o bairro periférico e os desafios da adaptação, ela abriu um consultório de psicologia clínica. Mas seu propósito ia além: estabeleceu também uma prática de projetos sociais voltados para comunidades carentes, onde, com sua voz e a força de sua equipe, mesmo que pequena diante da discrepância mundial, batalhava incansavelmente pela equidade racial, pelo combate ao racismo estrutural e aos seus profundos prejuízos psicológicos e sociais.
A feira anual de artesanato que o Mogi Shopping realiza tornou-se um ponto estratégico para Aisha. O stand dela não era apenas um espaço de vendas. As cores vivas das capulanas vibravam sob as luzes, convidando ao toque e ao olhar atento. Era ali que Aisha enfatizava a intenção de divulgar a cultura das capulanas, explicando cada padrão, cada cor, e as histórias que esses tecidos milenares contam. Mais importante, ela divulgava a história por trás de cada tecido, e de seu próprio projeto. Enquanto as mãos dos visitantes percorriam os tecidos, Aisha sentia o eco da vasta Diáspora, um fio invisível que se estendia das margens do Rio Nilo, berço de civilizações como a do Egito, e que se ramificava por todo o continente africano, chegando ao Brasil. Era um chamado para reconhecer a imensa herança de homens e mulheres, especialmente pessoas pretas brasileiras, que são alicerces de uma cultura ancestral rica e complexa. Entre elas, destacam-se:
- Maria Firmina dos Reis (1825-1917): Considerada a primeira romancista brasileira, sua obra "Úrsula" é um marco na literatura abolicionista, denunciando a crueldade da escravidão com uma perspectiva inédita para a época.
- Carolina Maria de Jesus (1914-1977): Escritora e diarista, ganhou reconhecimento internacional com "Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada", que retratava sua vida na favela do Canindé e a luta diária pela sobrevivência com uma crueza e poesia singulares.
- Conceição Evaristo (1946-): Uma das maiores escritoras contemporâneas brasileiras, sua obra é marcada pela "escrevivência" – um termo que cunhou para descrever a escrita que nasce da vivência da mulher negra, tecendo narrativas poderosas sobre ancestralidade, resistência e as violências do racismo e sexismo.
Era a prova de que, para Aisha, o ato de olhar para trás e ressignificar sua história era, na verdade, cumprir um padrão que já estava ali, esperando para ser revelado. O tecido vivo de sua vida, com todas as suas complexidades e paradoxos, sempre esteve destinado a ser a mais bela das capulanas, intrinsecamente ligada à sua linha histórica de família, cultura, etnia, folclore e costumes, que se reafirmavam e ganhavam novos significados em sua jornada de desenvolvimento, sempre com a força e a memória da vida em comunidade como seu alicerce.
Esta é uma história ficcional, mas não deixa de ser profundamente verdadeira para nós, brasileiras, alicerces de uma rica e complexa cultura ancestral que se ergue e se ressignifica em contraposição às culturas coloniais.
Apesar de trazer elementos de reflexão e análise social que são comuns em crônicas, a estrutura narrativa com personagens, um enredo que se desenvolve (início, meio e fim), um conflito central (a adaptação e a saúde mental de Aisha), e uma resolução, o caracteriza mais como um conto. O foco na jornada de Aisha e na transformação dela ao longo do tempo aponta para uma narrativa ficcional com desenvolvimento de personagem, o que é típico de contos.